O Corpo é Delas: Uma Defesa Filosófica e Secular do Direito da Mulher sobre o Próprio Corpo

Vivemos em uma época paradoxal: enquanto a ciência avança, os direitos civis se expandem em várias frentes, e o discurso sobre igualdade de gênero ganha visibilidade, ainda é necessário afirmar o óbvio — que as mulheres têm o direito absoluto de decidir sobre seus próprios corpos. Essa afirmação, que deveria ser ponto pacífico em qualquer sociedade democrática, continua sendo alvo de disputa, censura e controle, principalmente por forças políticas, religiosas e culturais que enxergam o corpo feminino como território a ser regulado, vigiado e disciplinado. Como filósofo e ateu, parto do princípio de que o ser humano é autônomo por natureza, e que nenhum corpo pertence ao Estado, à igreja, à família, ou à sociedade. O corpo é o primeiro território da liberdade. Negar a uma mulher o direito de decidir sobre seu corpo — seja em relação à sexualidade, à reprodução, à estética ou à saúde — é negar sua humanidade plena. Neste artigo, vamos explorar, com base na razão, na ética e nos direitos humanos, por que o direito da mulher sobre seu corpo deve ser inegociável — e por que essa luta precisa continuar.

O Corpo é Delas: Uma Defesa Filosófica e Secular do Direito da Mulher sobre o Próprio Corpo
O Corpo é Delas: Uma Defesa Filosófica e Secular do Direito da Mulher sobre o Próprio Corpo

O Corpo é Delas: Uma Defesa Filosófica e Secular do Direito da Mulher sobre o Próprio Corpo

1. O Corpo como Espaço de Liberdade

A noção de autonomia corporal é uma das bases da ética moderna. O filósofo Immanuel Kant, por exemplo, afirmava que o ser humano é um fim em si mesmo, e que ninguém deve ser usado como meio para fins alheios. Traduzido para o contexto do corpo feminino, isso significa: nenhuma mulher deve ser obrigada a gestar, amamentar, esconder, exibir ou mutilar seu corpo para atender normas sociais, religiosas ou políticas.

Jean-Paul Sartre, existencialista ateu, foi ainda mais direto: "Estamos condenados à liberdade." Isso implica que, embora viver com autonomia envolva riscos e responsabilidades, o direito de escolha é inalienável. Se não posso decidir sobre meu próprio corpo, não sou livre — sou propriedade.


2. A Religião como Instrumento de Controle Corporal

Grande parte das restrições ao corpo feminino nasce ou é justificada por argumentos religiosos. A ideia de que a mulher é naturalmente submissa, impura, pecadora ou "vessel" (vaso) para a reprodução é uma construção teológica antiga, presente em diversas tradições: do cristianismo ao islamismo, passando por certas correntes do judaísmo e do hinduísmo.

Essas ideias, transpostas para o campo político, transformam-se em leis e políticas públicas que:

  • Criminalizam o aborto, mesmo em casos de estupro;

  • Impõem vestimentas obrigatórias;

  • Censuram o prazer e o desejo feminino;

  • Promovem a maternidade compulsória;

  • Negam acesso à educação sexual.

A pergunta que precisa ser feita é: por que doutrinas religiosas devem determinar o que uma mulher faz com seu corpo em um Estado laico?


3. A Bioética e o Direito à Escolha

A bioética secular defende que toda decisão sobre o corpo deve estar baseada no consentimento informado e na autonomia individual. Isso vale para qualquer pessoa — mas ganha importância ainda maior quando falamos do corpo feminino, historicamente sujeito à medicalização forçada, à esterilização involuntária, à violência obstétrica e à ausência de voz nas decisões clínicas.

A escolha de interromper uma gravidez, fazer uma laqueadura, optar por uma cesárea ou tomar anticoncepcionais não pode ser tratada como "pecado", mas como direito. O Estado e os profissionais de saúde devem garantir acesso seguro e legal, e não impor julgamentos morais.


4. O Aborto como Questão de Liberdade e Justiça

Talvez nenhum outro tema exemplifique tanto a disputa pelo corpo feminino quanto o aborto. Criminalizar o aborto é, antes de tudo, criminalizar a autonomia. Significa dizer que o corpo da mulher é um "meio de produção de vidas", subordinado à moral coletiva.

Nos países onde o aborto é legalizado, as taxas de interrupção da gravidez são, muitas vezes, menores, justamente porque as mulheres têm acesso à informação, prevenção e assistência médica. Já em países com leis restritivas, o que se vê são clínicas clandestinas, mortes evitáveis, traumas psicológicos e desigualdade social — porque as ricas abortam com segurança, e as pobres morrem tentando.

Defender o direito ao aborto não é defender o aborto — é defender o direito à escolha.


5. O Desejo e a Liberdade Sexual

Outro aspecto central da autonomia corporal é o direito da mulher de viver sua sexualidade como quiser — com ou sem parceiro, com prazer ou sem interesse sexual, com liberdade para expressar ou negar desejo.

Por séculos, a sexualidade feminina foi encarada como tabu, objeto de repressão ou instrumento de dominação. A mulher "recatada" era exaltada, enquanto a mulher que tomava iniciativa era rotulada. Esse controle da libido está intimamente ligado ao controle político e religioso do corpo.

A libertação sexual não é libertinagem — é respeito pela individualidade.


6. A Estética e a Pressão sobre o Corpo Feminino

A ditadura estética imposta sobre as mulheres também é uma forma de controle corporal. Cirurgias plásticas compulsivas, dietas extremas, padrões inatingíveis, vergonha corporal e gordofobia são sintomas de uma cultura que vê o corpo feminino como um produto a ser moldado para consumo alheio — e não como um território autônomo.

A luta feminista, aliada à crítica filosófica, precisa questionar não apenas quem decide, mas por que decidimos certas coisas sobre nossos corpos. A liberdade estética só é real quando é livre de coerção.


7. O Estado, o Corpo e a Cidadania Plena

Negar às mulheres o direito sobre seus corpos é negá-las como sujeitas políticas. Um Estado que controla o útero, o vestuário, a pílula ou o parto das mulheres não é democrático — é autoritário.

O corpo é o primeiro território da cidadania. A verdadeira igualdade só começa quando cada pessoa tem pleno controle sobre sua existência física. Isso inclui saúde reprodutiva, sexualidade, maternidade (ou não), prazer, estética e morte digna.


Conclusão: O Corpo é Político, e a Liberdade é Intransferível

A luta pelo direito da mulher sobre o próprio corpo é uma luta por liberdade, dignidade e racionalidade. Não se trata apenas de feminismo, mas de ética, de cidadania, de laicidade e de respeito à autonomia.

Como filósofo e ateu, defendo que nenhuma autoridade religiosa, política ou médica deve ter mais poder sobre o corpo de uma mulher do que ela mesma. O corpo é o palco da vida, e só quem vive nele deve escrever o roteiro.